domingo, 20 de março de 2011

She



Um másculo sotaque francês canta She. As flores da pitangueira, que formam um tapete branco no jardim, desprendem um aroma suave que invade o ar. Voyer, a luz do sol do meio dia invade a intimidade do quarto através da veneziana. 

Não se apercebem da passagem do tempo, apenas ficam ali de olhos fechados e, na ponta dos dedos, a percepção das partes que compõe o todo. Cada centímetro de pele, percebido com todos seus detalhes, marcas, pelos, poros. O desejo de, ao tocar, trazer para dentro de si o outro, num instantâneo antropofágico.

À distância os cães latem trazendo o passado à tona. O arrepio de um toque devolve os pensamentos ao presente, os lábios percorrem contornos macios, buscando novos sabores. Ao final do percurso, o desfrute do sabor de sua boca.




Exercício de criação nº 10

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Acidente Literário - Os Ideogramas de Guilherme





Título: Os Ideogramas de Guilherme

Local: Restaurante do Gordo

Data: 24/02/2002

Protagonistas: “Dom” Guilherme Primo Vidotto, Edson Bueno de Camargo e Cecília Camargo.

Tipo: Conversa de botequim.

Descrição do Acidente Literário: Conversávamos no Restaurante do Gordo depois de passearmos pela cidade a fim de coletar imagens para produção literária de nosso grupo Taba de Corumbê. Dom Guilherme sugeriu que tomássemos chopp de garrafa e lá começamos a conversar sobre situações engraçadas e ele nos contou do dia que saiu com um casal de amigos e estes pediram uma porção de fritas. Imagético como sempre foi, começou a ver nas batatinhas as formas de ideogramas. Sobre seu prato dispôs várias delas e ao final da criação de cada símbolo degustava-as saborosamente. Sem perceber, criou um novo alfabeto, ao mesmo tempo em que extinguiu a porção, sem deixar nada para seus amigos saborearem.
Enquanto nos contava essa divertida história, ia degustando as fritas à nossa frente. Porém nós não estávamos tão distraídos como seu casal de amigos e tratamos de garantir nossa parte na porção, antes que ele resolvesse criar uma nova lista de ideogramas. Ao chegar em casa, resolvi brincar um pouco com a história e acabei por criar um pequeno poema.

Recolhido por: Cecília Camargo


Os Ideogramas de Guilherme

O menino brinca
Com as pequenas linhas amarelas.
Finge garatujas
Tentando dar-lhes significados
Imagina que são palavras de amor,
Sonhos de princesas e dragões
Histórias sem fim.
Mas qual o que,
O alfabeto se acaba
E surge em sua frente
Apenas o pequeno prato vazio
Onde antes descansavam tranquilas,
As batatinhas.


Exercício de criação 8 

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terça-feira, 8 de março de 2011

Livro conhecido



Nunca se deve julgar um livro por sua capa. É isso que acredito. E digo mais, aquele velho conhecido sempre tem algo novo a nos oferecer, uma leitura diferente a cada folhear de página.

Abri-o com um grande desejo de revê-lo. Tirei-lhe com cuidado a sobrecapa e, suave, com a ponta dos dedos, contornei cada detalhe que os anos lhe imprimiram. Percorri primeiro com os olhos todo seu conteúdo, depois, com mais vagar toquei cada parte que me contava uma história. Senti seu cheiro, delicioso e velho conhecido. Cada trecho era um novo capítulo, que fazia meu corpo tremer. Sentia-me totalmente envolvida e mergulhei de cabeça na aventura que aparecia em minha frente. Saciei minha sede em seus contornos e caminhos suaves, percorri, insone, estradas sinuosas. Partilhei desejos de entrelinhas e me perdi nas imagens poéticas tiradas das gavetas de Dali. Tirou-me o fôlego, devolveu-o, levou-me ao êxtase, em uma leitura em Braille, desse teu corpo sempre tão convidativo, que depois me serve de regaço, onde deixo brotar meus sonhos mais delicados. 


Exercício de criação 11


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A sétima face do Apocalipse




Cecília Camargo

lâmina
ávida
reflete
o reflexo
do espelho
de meus olhos
perscrutando a noite

corta
o vinho do cálice
oferenda pagã

no entalhe
a história de tempos idos

nas mãos da sacerdotisa
rompe as teias do tempo
e do momento
fica o instantâneo
onde perdura o sagrado

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 Exercício de criação 12

Três pedras



Cecília Camargo

Leiteira, bule e xícara. Nos quintais do tempo, árvores e lago, café e leite, para príncipes e princesas.

Ao cair da tarde, cuidadosamente, guardava-as a um canto, próximo ao porão.

Nos dias que se seguiam, a maior era a leiteira, a média era o bule e a menor era a xícara. 

Não que lhe faltasse brinquedos, mas sua imaginação de criança transcendia.

Em seu castelo, sua prataria era de granito. Com mesuras e rapapés, servia a mesa no chão de terra batida.

Mas seus olhos percorriam grandes salões e jardins em forma de labirinto.

Até que um dia, um grande dragão apoderou-se de seu castelo.

Seus salões caíram por terra, seu lago desapareceu e sua prataria tão querida sucumbiu sob os escombros de seu sonho de menina.

O quintal daria lugar a uma construção de verdade. E o que era aquilo afinal, senão apenas pedras?

Por muitos dias a menina cavou o chão atrás de seu pequeno tesouro, até perceber que sua infância fora enterrada com ele.

O mundo adulto se avizinhava ameaçador. Não havia mais lugar para o faz-de-conta. Tinha de crescer, quisesse ou não.

E para não se deixar entristecer, a menina separou em seu coração uma pequenina parte e nele depositou a essência de suas três pequenas joias, que hoje ainda adornam suas lembranças.

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/01/exercicio-de-criacao-n-9.html

Gambiarra Literária - Exercício de criação nº 9