sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

 Um pouco mais de minhas memórias que acabam por ser memórias de outras memórias, pois os fatos narrados aqui hoje, foram passados para mim, através de meu pai.

 

Meu tio Mário, a sogra e o café da manhã


Algumas lembranças nos vem à mente, às vezes, por ouvirmos uma frase solta, que nem nos foi dirigida. Ouvi um “Está servido?”, que não foi para mim e imediatamente lembrei de meu tio Mário, irmão do meu pai, que faleceu muito cedo com apenas 33 anos de idade, em um acidente de moto. Eu não tinha um ano completo ainda e por isso, não tenho memória dele.

Ele era casado com minha tia Lídia, que havia sido fruto de um incesto entre um tio e a sobrinha que era deficiente mental. Minha tinha Lídia foi criada pela Dona Mábile, vizinha de sua mãe biológica, uma pessoa boníssima que se apiedou tanto da mãe indefesa, quanto da criança e tomou-a para si, sem afastá-la da mãe biológica.

Meu pai contava que era um período de extrema pobreza e meu tio não tinha nenhuma sobra de comida. Um dia, bem cedo, ele havia preparado uma caneca de café preto e um pedaço de pão para forrar o estômago e ir trabalhar. No momento em que se sentava à mesa, a mãe biológica de sua esposa, chegou, pois continuava vizinha da filha. Ele, por pura educação disse: “Está servida?”, qualquer pessoa responderia que não, pois a oferta não era verdadeira, mas por conta de sua deficiência, ela prontamente respondeu que sim. Esticou as mãos, pegou a xícara de café e o pão, sentou-se à mesa e saboreou gostosamente o café da manhã de meu tio, que por conta de seus parcos recursos, não tinha mais nem café, nem pão para comer, o que o fez ir trabalhar em jejum, levando apenas a marmita com arroz, feijão e um ovo frito, para passar o dia todo.

No dia, ele não achou muita graça, mas depois, contava isso e dava risada da situação insólita. Às vezes, ser educado pode nos colocar em situações difíceis...


terça-feira, 30 de janeiro de 2024

 Pode parecer anacrônico, mas quero começar com uma crônica sobre o Natal...


O perfume do Natal


Minha mãe adorava comemorar o Natal. Meu pai, aproveitava o terreno grande e plantava ciprestes ao redor de todo o quintal, que acabava por servir de cerca para, no final de ano, cortar e termos a árvore natural dentro de casa, colocada em uma lata com areia, embrulhada em papel pedra. O perfume do cipreste preenchia a casa e trazia o espírito do Natal. A árvore era devidamente enfeitada com bolinhas e enfeites, todos feitos de vidro colorido e o pisca era de lâmpadas coloridas grandes em relação às de hoje, com formatos de frutas, doces, entre outros. Uma vez ganhei um Papai Noel com balinhas dentro e ele era de plástico vermelho. No ano seguinte, meu pai fez uma adaptação no pisca e colocou uma das lampadinhas dentro dele. Para mim, ficou o máximo. Decididamente, era o período do ano que eu mais gostava.

Meus pais se empenhavam em conseguir dinheiro, além do parco salário que meu pai recebia, com trabalhos extras, para poderem comprar os presentes que nós, eu e meu irmão, pedíamos para o Papai Noel. Nesse sentido éramos privilegiados, pois a maioria das famílias naquela época, ou dava coisas simples de presente, ou nem dava. Mas meus pais se esforçavam e nos davam os brinquedos que pedíamos.

A fábrica que meu pai trabalhava dava uma boneca de presente de final de ano e uma festa de confraternização para as famílias dos trabalhadores. Voltava para casa abraçada na caixa da boneca, me deliciando com o perfume natural de plástico novo, ansiosa por abrir e brincar com ela. Sempre adorei bonecas.

Agora, me pego relembrando esses natais e o que vem à memória, não são apenas as cenas, mas os odores, quanto de minhas memórias que estão ligadas a esses “perfumes”.

Nesse período me sinto muito mais próxima de meus pais e avós, que tanto gostavam de comemorar o Natal, parece que eles estão mais vivos e próximos do que em outras datas. Faço questão de manter muitas tradições e continuar montando a árvore, agora artificial, com enfeites de plástico, não mais de vidro, por conta da gata que tenho em casa e das crianças que estão sempre por perto. Montamos o presépio, sempre contando histórias do passado e dos significados de cada peça, faço isso com meu filho e com meu neto. E nesse momento nos conectamos entre nós que estamos presentes, com os nossos antepassados presentes agora na memória e nas tradições e deixo com meu filho e neto a continuidade de manterem o legado de família. E é essa conexão entre gerações presentes e ausentes que, para mim, representa exatamente o espírito do Natal.

Assim, a cada ano, construímos novas memórias e nos entrelaçamos na vida das pessoas que amamos. E sim, sempre temos enfeites a mais, para que qualquer um que venha nos visitar, possa também enfeitar a árvore, manter a tradição e criar memórias conosco.

Retorno

Há muito que não posto nada por aqui. Quem tomava conta do meu blogue era o Edson e depois que ele partiu, não tive forças para continuar. Depois de tantos anos, estou com vontade de iniciar um novo projeto, pedido do meu filho Martín, que disse que eu deveria começar a escrever as histórias que conto sobre nossa família. Dessa forma pretendo colocar aqui, lembranças e reminiscências, sem juízo de valor ou interesse em criticar. Apenas situações, memórias e lembranças minhas e contadas por meus pais e avós. Desta forma, serão histórias que nem sempre vivenciei, mas que estão vívidas em minha memória, através dos relatos dos meus antepassados.

Pretendo, se tudo der certo, postar uma  crônica a cada semana, lembrando  e ao mesmo tempo prestando homenagem e respeito aos meus antepassados. Mas não esperem muito, não são aventuras pitorescas ou histórias escandalosas, são apenas vivencias cotidianas, simples e básicas, algumas com uma certa dose hilária, outras um pouco mais sérias, de pessoas ligadas pela ascendência/descendência, que durante o tempo que interagiram, estavam eivadas de amor, carinho e esperança por tempos melhores, que marcaram positivamente minha vida e influenciaram a pessoa que sou hoje.

Um brinde aos que vieram antes de mim e saudações aos que vieram e virão depois!


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

exercício de criação 16

Escher- Drawing hands


ato de criação


Cecília Camargo

o lápis
falo ereto
rompendo a virgindade
do papel
sêmen disperso em grafite
fecunda palavras
criando poesia




exercício de criação 16 

 http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/05/exercicio-de-criacao-16.html

Exercício de criação 29 - Gambiarra Literária




Manual de Instruções para Leitura em Braile

- Encontre o parceiro ideal.
- Procure um lugar calmo e interessante.
- Deixe-se descontrair.
- Converse, ria um pouco, sempressa.
- Deixe seus dedos percorrerem cada detalhe, bem devagar.
- Comece pela capa.
- Depois aprecia a lombada.
- A espessura de cada página.
- Feche os olhos.
- Deixe que seus dedos indiquem o caminho a percorrer.
- Perceba que a narrativa pode não ser linear.
- Então, se necessário, volte e delicadamente aprecie todos os detalhes novamente.
- Sem pressa.
- Nos momentos de maior tensão, deixe que seus dedos crispem, sem culpa.
- Com as diferentes nuances da narrativa, não se reprima, permita-se arrepiar toda.
- No desfecho sinta-se a vontade para externar seu prazer.
- Após uma breve pausa para o descanso, pode-se começar novamente, variando por onde se inicia a leitura.
- Cada corpo tem uma história.
- Cada dia um novo capítulo.




exercício de criação 23 - gambiarra literária




"clichê" de Eisenstein

1. A mão levanta a faca.
2. Os olhos da vítima abrem-se repentinamente.
3. Mãos agarram uma mesa.
4. A faca desce.
5. Olhos piscam involuntariamente.
6. O sangue espirra.
7. Uma boca solta um grito.
8. Algo pinga no sapato.



Cecília Camargo


Primeiro exercício. 

1

Pela sombra
o vislumbre do desfecho
carinho gélido

2

devaneio interrompido
surpresa
horizonte próximo

3

ata sua alma ao corpo
através da solidez
de outrora árvore

4

prenúncio do segundo
que se antecipa
tornando futuro presente

5

como janelas
movimenta suas folhas
em tentativa vã

6

do jorro que brota
emana
suave odor

7

dos recônditos
a mãe primeva
se manifesta

8

a gota que se esvai
distingue-se sobre o couro
que recobre a planta dos pés



Segundo Exercício.


1
prenúncio de penetração

2
antever o gozo

3
mãos crispadas

4
ato consumado

5
êxtase

6
jorro da saciedade

7
gemido

8
e a gota de sêmen pinga
sobre seus pés



exercício de criação 23 

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/07/exercicio-de-criacao-23.html

exercício de criação 13


conto de fadas

Cecília Camargo

contraponto
entre o sangue das mãos
e a alvura da pele

fuga
árvores opressoras
sentidos embaralhados

refúgio
sete cavalheiros
a lhe proteger

a inocência descobre seu príncipe
a fruta do pecado
castiga o desejo

do sono da morte
desperta
com o primeiro beijo de amor


15 p/ 16/10/2011
 

exercício de criação 13

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Dia de Amar seu Corpo - 2011 -




Sempre tive orgulho de ser mulher. Não uma mulher qualquer, daquelas que são escravas da moda, que usam a roupa um número menor, que agridem o próprio corpo. Mas a mulher que se conhece, que conhece suas mudanças hormonais, que sabe quando está fértil, quando vai menstruar e gosta disso, não acha que seja um incômodo.

Do alto dos meus quase cinquenta anos, não estou nem aí se tenho rugas, estrias ou celulites, pois as rugas mostram o que já vi e o que já vivi, as estrias mostram a gravidez que me fez mãe e as celulites lembram-me de minha fertilidade.

Não tenho que ser escrava de regras absurdas que servem apenas para tirar minha liberdade e minha consciência de mulher.

Sou livre para amar qualquer um, da forma que mais me convier. Sou dona do meu prazer. Sou livre para fazer minhas próprias escolhas assumindo todos os riscos. Sou livre para fazer exatamente o que acho que devo fazer. Tudo por que me conheço, me entendo, me sinto completa, me respeito e todos os dias acordo consciente de que amo meu corpo como ele é e isso me permite ser quem sou.


#LYBD


Dia de amar seu corpo

domingo, 20 de março de 2011

She



Um másculo sotaque francês canta She. As flores da pitangueira, que formam um tapete branco no jardim, desprendem um aroma suave que invade o ar. Voyer, a luz do sol do meio dia invade a intimidade do quarto através da veneziana. 

Não se apercebem da passagem do tempo, apenas ficam ali de olhos fechados e, na ponta dos dedos, a percepção das partes que compõe o todo. Cada centímetro de pele, percebido com todos seus detalhes, marcas, pelos, poros. O desejo de, ao tocar, trazer para dentro de si o outro, num instantâneo antropofágico.

À distância os cães latem trazendo o passado à tona. O arrepio de um toque devolve os pensamentos ao presente, os lábios percorrem contornos macios, buscando novos sabores. Ao final do percurso, o desfrute do sabor de sua boca.




Exercício de criação nº 10

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/01/exercicio-de-criacao-n-10.html

Acidente Literário - Os Ideogramas de Guilherme





Título: Os Ideogramas de Guilherme

Local: Restaurante do Gordo

Data: 24/02/2002

Protagonistas: “Dom” Guilherme Primo Vidotto, Edson Bueno de Camargo e Cecília Camargo.

Tipo: Conversa de botequim.

Descrição do Acidente Literário: Conversávamos no Restaurante do Gordo depois de passearmos pela cidade a fim de coletar imagens para produção literária de nosso grupo Taba de Corumbê. Dom Guilherme sugeriu que tomássemos chopp de garrafa e lá começamos a conversar sobre situações engraçadas e ele nos contou do dia que saiu com um casal de amigos e estes pediram uma porção de fritas. Imagético como sempre foi, começou a ver nas batatinhas as formas de ideogramas. Sobre seu prato dispôs várias delas e ao final da criação de cada símbolo degustava-as saborosamente. Sem perceber, criou um novo alfabeto, ao mesmo tempo em que extinguiu a porção, sem deixar nada para seus amigos saborearem.
Enquanto nos contava essa divertida história, ia degustando as fritas à nossa frente. Porém nós não estávamos tão distraídos como seu casal de amigos e tratamos de garantir nossa parte na porção, antes que ele resolvesse criar uma nova lista de ideogramas. Ao chegar em casa, resolvi brincar um pouco com a história e acabei por criar um pequeno poema.

Recolhido por: Cecília Camargo


Os Ideogramas de Guilherme

O menino brinca
Com as pequenas linhas amarelas.
Finge garatujas
Tentando dar-lhes significados
Imagina que são palavras de amor,
Sonhos de princesas e dragões
Histórias sem fim.
Mas qual o que,
O alfabeto se acaba
E surge em sua frente
Apenas o pequeno prato vazio
Onde antes descansavam tranquilas,
As batatinhas.


Exercício de criação 8 

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2010/11/exercicio-de-criacao-8.html

 

terça-feira, 8 de março de 2011

Livro conhecido



Nunca se deve julgar um livro por sua capa. É isso que acredito. E digo mais, aquele velho conhecido sempre tem algo novo a nos oferecer, uma leitura diferente a cada folhear de página.

Abri-o com um grande desejo de revê-lo. Tirei-lhe com cuidado a sobrecapa e, suave, com a ponta dos dedos, contornei cada detalhe que os anos lhe imprimiram. Percorri primeiro com os olhos todo seu conteúdo, depois, com mais vagar toquei cada parte que me contava uma história. Senti seu cheiro, delicioso e velho conhecido. Cada trecho era um novo capítulo, que fazia meu corpo tremer. Sentia-me totalmente envolvida e mergulhei de cabeça na aventura que aparecia em minha frente. Saciei minha sede em seus contornos e caminhos suaves, percorri, insone, estradas sinuosas. Partilhei desejos de entrelinhas e me perdi nas imagens poéticas tiradas das gavetas de Dali. Tirou-me o fôlego, devolveu-o, levou-me ao êxtase, em uma leitura em Braille, desse teu corpo sempre tão convidativo, que depois me serve de regaço, onde deixo brotar meus sonhos mais delicados. 


Exercício de criação 11


http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/01/exercicio-de-criacao-11.html

A sétima face do Apocalipse




Cecília Camargo

lâmina
ávida
reflete
o reflexo
do espelho
de meus olhos
perscrutando a noite

corta
o vinho do cálice
oferenda pagã

no entalhe
a história de tempos idos

nas mãos da sacerdotisa
rompe as teias do tempo
e do momento
fica o instantâneo
onde perdura o sagrado

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/02/exercicio-de-criacao-11.html

 Exercício de criação 12

Três pedras



Cecília Camargo

Leiteira, bule e xícara. Nos quintais do tempo, árvores e lago, café e leite, para príncipes e princesas.

Ao cair da tarde, cuidadosamente, guardava-as a um canto, próximo ao porão.

Nos dias que se seguiam, a maior era a leiteira, a média era o bule e a menor era a xícara. 

Não que lhe faltasse brinquedos, mas sua imaginação de criança transcendia.

Em seu castelo, sua prataria era de granito. Com mesuras e rapapés, servia a mesa no chão de terra batida.

Mas seus olhos percorriam grandes salões e jardins em forma de labirinto.

Até que um dia, um grande dragão apoderou-se de seu castelo.

Seus salões caíram por terra, seu lago desapareceu e sua prataria tão querida sucumbiu sob os escombros de seu sonho de menina.

O quintal daria lugar a uma construção de verdade. E o que era aquilo afinal, senão apenas pedras?

Por muitos dias a menina cavou o chão atrás de seu pequeno tesouro, até perceber que sua infância fora enterrada com ele.

O mundo adulto se avizinhava ameaçador. Não havia mais lugar para o faz-de-conta. Tinha de crescer, quisesse ou não.

E para não se deixar entristecer, a menina separou em seu coração uma pequenina parte e nele depositou a essência de suas três pequenas joias, que hoje ainda adornam suas lembranças.

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/01/exercicio-de-criacao-n-9.html

Gambiarra Literária - Exercício de criação nº 9


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Através da sombra vislumbro um contorno conhecido.


Cecília Camargo

Toco suave sua cintura e com as pontas dos dedos percorro suas costas. Percebo um leve arrepio. Alcanço seus ombros, fortes, em contraste com a suavidade de sua pele. Escorrego devagar por seus braços e seguro firme suas mãos.

O caminho recomeça, não passos rápidos, mas meticuloso e lento, sentindo os poros e os pelos que recobrem seus braços. Chego a seu pescoço e sinto o pulso como um eco. Em sua nuca, por entre seus cabelos, meus dedos se perdem. Seguro sua cabeça entre minhas mãos sempre como se fossem a primeira e a última vez, com a sede dos que sabem da dor da ausência.

Retomo meu caminho e da nuca contorno seus ombros e encontro seu peito arfante. Deslizo por seu ventre, contorno seu umbigo, desço até suas coxas firmes. Seus joelhos são curvas precisas, que me levam às pernas torneadas e aos pés que já trilharam caminhos que não quero saber, pois ainda não caminhava a seu lado, mas tenho saudade do tempo que não foi.
Em silêncio, de olhos fechados, você simplesmente se deixa tocar, sem pensar em nada a não ser na sensação de ser lido por dedos conhecidos, mas que sempre trazem consigo o desejo de conhecer mais, de levar esse toque a um sentido tão profundo que o faz se sentir livre de seu corpo e transcender.

Já não está mais de pé, está deitado entre almofadas macias e meus dedos agora sobem por suas pernas encontram sua virilha e acariciam seu sexo. Essa leitura já sua conhecida, sempre trás consigo uma interpretação nova, um toque além.

Ao prescindir do olhar a pele toma conta das sensações e o prazer não se atém mais a um lugar único. Seu corpo todo é um só gozo.


Exercício de criação 7

http://gambiarraliteraria.blogspot.com/